sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

T.

Que pena que a massa de que sou feita não seja capaz de manter unidos os tijolos de uma casa. Queria para ti esse céu concreto, protegendo-te dos caprichos do tempo e conjugações no plural.
Fica, em vez disso, o amor todo que te tenho, essa morada perene de músculo sob abóbada de osso. Desejo ardentemente que te seja chão suficiente.

20.3.2018
Cornélia

Cornélia queria ser beija-flor. Queria, de entre todas as aves, o voo leve daquele pássaro que colhia pólen de uma flor e, com seu beijo, o deixava noutra, como que florindo ele também.
Como poderia tão maciço corpo, dotado de quatro estômagos para que não duvidasse da sua natureza ruminante, ter devaneios alados? Como haveria, quem passa o tempo produzindo estrume, de ser capaz de voo subtil?
Cornélia sabia da sua bovinidade, mas por um instante, enquanto sonhava, sentiu que se lhe elevavam os cascos.


25.2.2018

Alice


Alice esqueceu aquele dia, precisamente por ser inesquecível.
O tio levara-a na sua carrinha até uma praia a onde se chegava atravessando a ria por uma ponte de madeira. Junho ainda há pouco começara e o calor ainda não levava embalo.
Alice ia à frente, expandindo o olhar pelo horizonte que mudava a cada tábua pisada. O tio seguia-a, fazendo pontaria às costas dela com a máquina fotográfica. Absorta a devorar a paisagem, Alice não sentia os disparos.
No fim da ponte, de repente, a praia. A praia e tudo o mais que veio a seguir. A dor, a vergonha, o medo, a confusão, a raiva. Alice queria ter-se metido num buraco. Como não pôde, escavou um nos confins da memória, onde enterrou a lembrança do dia em que o tio a obrigou a ser mulher.

7.2.2007

Céu de papel


Como podia o cigarro manter a chama acesa num dia tão encharcado, era algo que Gonçalo não perdia tempo a tentar decifrar; já o incêndio a que se fintava aquele céu de papel, tinha fácil explicação: era a chuva, de um tamanho miudinho mas persistente, que aguava todos os intentos de atear fogos na paisagem. Porque é que Gonçalo desejava purgar com labaredas aquele lugar, só poderia ser compreendido mantendo o espaço, mas recuando no tempo.

Arados, tinham sido os seus pés, sulcando trilhos naquele monte e no vale onde desaguava. Na ausência dela, preparara os caminhos para que, quando chegassem os seus passos, florissem espigas, para que, ao voltar a casa, levedasse o pão.
De margaridas vestia a mesa da cozinha, alimentando-as a água da torneira vertida num copo; com sopa e verduras acariciava o estômago dela e, à noite, adormecia saciado do seu cheiro.
Pensava ele que eram felizes, que o contentamento que sentia se estendia a ela. Nunca reparou no olhar ausente que trazia no rosto, nos braços laços com que o rodeava na cama, nas verduras deixadas na borda do prato. E por isso, quando a viu pisar os caminhos que ele semeara, acompanhada de pés estranhos, não compreendeu a leveza no andar dela, o brilho dos cabelos que ao pé dele nunca soltava, as mãos que afinal gostavam de agarrar-se a outras.

Passaram-se meses, mas Gonçalo ainda procura, nas nervuras dos troncos das árvores, na espessura da lama dos charcos, nos ramos de onde se ausentaram as folhas, a razão para os passeios daquela que amava terem trocado de companhia.
«Havia aquela expressão, claro - "Mais vale só do que mal acompanhado". Sim», pensou Gonçalo, «se ela não era capaz de apreciar os meus cozinhados, se os seus cabelos não encontravam espaço, junto de mim, para soltar-se, mais vale ter-se afastado. Eu... Eu estou bem assim. Ocupo os dois lados da cama, uso as almofadas sobrepostas, não tenho de mudar de canal nem de emissora para agradar-lhe; não tenho que fazer nenhum esforço para mantê-la ao meu lado, para sentir o odor familiar da sua pele ao acordar, para rechear da sua voz os meus ouvidos. Estou bem, assim, neste silêncio, nesta cama fria, nesta mesa posta em números ímpares...»

17.2.2007

Amor virtual


Antes de deitar-se, tal como o facilitador de desinquietamento espiritual lhe aconselhara, desabotoava a camisa e introduzia o cabo UC na ranhura por baixo das costelas, descarregando para os circuitos de comunicação partilhada tudo o que acumulara durante o dia, ao abrigo de um avatar incaracterístico e de um alias vulgar. Dormia, depois, um sono sem sonhos, confortado pelo esvaziamento experiencial que efectuara e por se crer no anonimato.

Na central de processamento de experiências vivenciais, no entanto, há muito que alguém seguia as suas descargas diárias, cativada pela sua impressionante humanidade. Mesmo sem possuir dados factuais, tais como o substantivo designativo pessoal ou a data de accionamento, ela conhecia-o intimamente e nutria por ele um sentimento que, se não estava em erro, se designara, em tempos, por "amor". Entregava-se à nostalgia daquele sentimento vintage e, em vez de enviar as entradas dele para o centro de ablução de descargas espirituais, encriptava-as e armazenava-as no seu nano-chip.

Com o passar do tempo, ela começou a ver-se na necessidade de apagar alguns dos seus próprios dados, para que o acesso e respectiva desencriptação das entradas dele, se efectuasse instantaneamente; ninguém teria paciência para aguardar a centésima de segundo que demorava o processo, se assim não fosse. A certa altura, os dados dela começaram a ser insuficientes e a entrar em conflito com as entradas armazenadas. Ela, incapaz já de passar sem as descargas dele, não hesitou em resolver as falhas, com o sacrifício de todos os seus dados. O seu chip interno, livre de contradições, pode deduzir então, inteligentemente, os dados de que necessitava para compor a pessoalidade das entradas que possuía: transcreveu-se, assim, a pessoalidade do amado para a do sujeito amador.

5.3.2007
António fechava a mão, abria-a, e olhava-a, talvez na esperança de que o que lhe tinham dito que estava escrito nas linhas da palma da mão se baralhasse, oferecendo-lhe outro destino, mas as dobras que trazia já desde a barriga da mãe, não se alteravam. Considerava-se céptico em relação a todas essas patranhas das bruxas, dos feitiços e das sinas, mas o encontro com aquela mulher tinha abalado profundamente as suas convicções. Visto que a ela não lhe eram estranhos os mais íntimos pormenores do seu passado, porque haveria de escapar-lhe o seu futuro?

Já há mais de uma hora que a mulher o tinha deixado entregue às revelações que lhe fizera, ali, naquela esplanada de uma praça espanhola, onde crianças corriam atrás das pombas, jovens com as cabeças cheias de rastas se reuniam em volta de um batuque monótono e reformados gastavam as horas que todos os dias lhes sobejavam.

António fixava a palma da mão, completamente analfabeto em relação aos seus mistérios, com um nó na garganta, um aperto nas têmporas e o estômago em desbaratinada revolução. Como podia ser, como? Como poderia ele fazer a monstruosidade que a sua mão adivinhara antes mesmo daquela se lhe ter insinuado na vontade? Tinha feito centenas de kilómetros até chegar a Madrid, como um sonâmbulo, guiado não sabia por que instinto. Sim, isso era verdade. Tinha guardado na mala do carro a espingarda de que se munia nas suas caçadas, isso também era certo. E não havia dúvida de que se sentara na esplanada em frente ao hotel onde se tinha hospedado a sua mulher com uma companhia que não a sua. Mas como poderia ele levar a cabo o acto que prognosticara aquela mulher?

Convencido de que a sua mão lhe ditava o destino, António decidiu tomar o futuro em suas próprias mãos. Acabou a cerveja, entretanto morna, partiu a garrafa na beira da mesa de ferro e, com o bocado que segurava na mão direita, interrompeu as linhas da esquerda.
Deixou dinheiro para a cerveja e para a gorjeta ao pé do copo, levantou-se, mergulhou a mão na fonte da praça durante uns minutos, tingindo a água de vermelho e, atando o lenço em volta, meteu-se no carro rumo a casa, feliz por recuperar o cepticismo com que sempre encarara as videntes

15.3.2007

Alberta


Flap, flap, flap, flap, flap.” Aquele som, simultaneamente irritante e excitante, fazia-a ranger os dentes. Imaginava-se a ultrapassar todas as limitações, contra as quais não podia lutar e gozava, de olhar alheado, a cena que nunca iria ter lugar.
Aquele pescoço longo, aquele mover de cabeça gracioso, o delicado andar… Aquele espectáculo que parecia montado para si, provocante, desafiador… Todos os dias se submetia, exaltada e impotente, ao desfile da graciosa criatura que mesmo durante o seu sono continuava a exibir-se, incólume, soberba, inalcançável.
Começou a perder o apetite, a passar o tempo em vigília, a desinteressar-se de tudo o que não fosse a contemplação daquela que tão febrilmente desejava. Os olhos encheram-se-lhe de um brilho delirante e passado pouco tempo, nada mais os habitava senão o reflexo da sua obsessão. Era feliz nesta infelicidade.
Um dia, porém, o que até então parecera completamente impossível, aconteceu. Alberta nem conseguia acreditar no que os seus olhos lhe diziam! A porta, a mesma que durante dias a fio tinha estado sistematicamente fechada, estava a ser aberta, precisamente por quem lhe tinha impedido o encontro com o seu destino.
As mãos tremiam-me enquanto segurava no puxador da porta, consciente, mas não segura do que estava a fazer, do que iria, certamente, acontecer. Repeti, para dissipar-lhe as dúvidas – Alberta, sai… podes ir – e engoli em seco.
Hesitante e incrédula primeiro, entusiasmada depois, Alberta atravessou a ombreira da porta e parou do lado de lá, enchendo o peito de ar livre e coragem. Tinha chegado a hora por que tanto ansiara e temera. A sua desejada não tinha chegado ainda e restavam por isso a Alberta mais alguns minutos de paciente espera.
Flap, flap, flap, flap, flap.” Pela primeira vez, Alberta estava verdadeiramente feliz por ouvir aquele som. Semicerrou os olhos para olhar a fonte do som que vinha na sua direcção, com o sol a brilhar por trás. Sem deixar de fitar a etérea criatura, avançou sem pressa, quase imperceptivelmente, na sua direcção. Quando já estava estonteantemente perto, Alberta franqueou a distância de um salto, cravando os dentes no pescoço da pomba e caindo da varanda abaixo no impulso. Eu, não me movi, já não era o primeiro gato que perdia desta maneira.

9.4.2007

Marli


Marli olha-se no espelho: os papos a amparar-lhe a queda do olhar, as linhas que divergem a partir dos cantos dos olhos, caminhos que levam a lado nenhum, a pele a amarelecer como um papel antigo, a linha dos lábios cada vez mais dura e cerrada, os pêlos a ensombrarem-lhe o rosto... trinta e oito anos. Continua: as mamas apontando o umbigo, a barriga gretada de ter albergado mais-um-no-mundo, a textura carregada de concavidades da sua pele…
Marli olha para lá do espelho. E não vê nada.
A trintona – é esse o seu estatuto – cobre com peças de roupa o corpo que transporta (há quanto tempo?) pela vida e com maquilhagem a cara que tem de apresentar lá fora. Sai.
Os sons da rua a introduzirem-se-lhe ouvidos acima e as silhuetas habitadas com que se cruza, quase conseguem dar-lhe a impressão de que participa na azáfama do quotidiano. Olha, indiferente, as montras iluminadas a berrarem “Feliz Natal”, tentando perceber qual é, exactamente, o sentimento que esta altura do ano invoca – se o alívio por não se ver arrastada pela furiosa demanda do presente certo, se o vazio por não ter ninguém a quem dá-lo.
Na paragem do autocarro, aguarda a viagem de todos os dias até um minúsculo escritório num bloco de apartamentos dos anos setenta, no centro da cidade, onde passa seis horas seguidas a fingir orgasmos por telefone.
Hoje tem clientes como cães – a pressão da quadra não perdoa. Para além dos habituais que invariavelmente pedem o mesmo, recebe a chamada de um cliente novo. Mais para passar o tempo do que por curiosidade, mete conversa com ele. Casado há pouco tempo e com um filho a caminho, o homem quer ouvir por telefone os gemidos que já não ecoam em casa. Conta que nasceu na casa de banho de uma área de serviço da A1 e que o seu primeiro enxoval foi uma manta de papel higiénico. Diz que na irónica data de 25 de Dezembro faz vinte e dois anos que o entregaram à guarda de uma instituição social, de onde só saiu, por seus próprios meios, aos catorze.
Esgotadas as confissões, o homem reclama por aquilo ao que ligou. Marli, a quem habitualmente e de forma mecânica saem os gemidos conforme a encomenda, não emite o mais mínimo som. No dia de Natal faz vinte e dois anos que numa viagem entre Lisboa e Porto sangrou numa área de serviço.

9.4.2007

Ressaca


Três da manhã. As rabanadas tinham-lhe caído mal. O brandy, o irish e a ginjinha não ajudaram. Cambaleia até à casa de banho e mal tem tempo de chegar à sanita para expulsar tudo o que não traz agarrado às entranhas.
Da casa de banho, segue para a cozinha. Água das Pedras a rodos pela goela abaixo. Melhor.
Na peregrinação pela casa, toca a vez ao escritório, o local do seu calvário. Senta-se em frente ao computador mudo e negro. Liga-o. Quer vomitar palavras azedas no monitor. Bater em cada tecla, em cada inicial dos nomes que detesta até à náusea. Enche páginas de ágrio desdém até se sentir aliviado. Arrota.
No tecto que os seus olhos fitam, começa a desenhar-se a silhueta que se lhe tinha esparramado na vista na noite anterior. As pernas da cunhada. O rabo da cunhada. O decote da cunhada. Através do decote, as mamas da cunhada.
Os dedos agora gulosos, babam, trémulos, toda a extensão do teclado. No disco duro, um tropel de infantilidades de cariz porno-sentimental.
Recosta-se na cadeira e fecha os olhos, abrindo descaradamente a imaginação. “E se tivesse o poder de fazer acontecer o que desejo? E se os acontecimentos tivessem lugar ao mesmo tempo que os escrevo?”. Com as hormonas a latejarem-lhe em todos os pontos sensíveis, começa, desvairadamente, a desenhar no portátil o mapa dos seus desejos.
Inicia no momento em que a cunhada se debruçou sobre ele para servir-se de mais bacalhau com grelos e ele lhe sentiu o cheiro a suor misturado com o perfume. Faz com que ela se sirva de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Enche-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida. Aproveita para encher também o copo da irmã da cunhada, porque sabe que ela não aguenta o álcool. Atolada em tinto, a mulher não consegue dar nem mais um passo e tem de ficar a passar a noite em casa dos pais. A cunhada tem mais resistência e pode levá-la a casa. Entra. Entra no apartamento, entra na sala, entra no quarto, entra na cama, entra na cunhada.Sai do escritório directamente para a casa de banho, agarrando o meio das pernas. Abafa a custo um prazenteiro “aaahh!”. Lava as mãos, apaga a luz e deita-se escrupulosamente do seu lado da cama.

Não sabe quantas horas dormiu. A mulher já se levantou. Tenta erguer-se, mas não consegue. Tenta alcançar o relógio para ver as horas, mas o seu esforço é em vão. Verifica, petrificado, que o controlo sobre o seu corpo se encontra circunscrito à sua cabeça. Daí para baixo é tudo um bando de membros insurrectos. Aperta os olhos com força. Fica assim uns bons momentos. Abre-os. Nova tentativa de movimento - gorada. “Porra!”.
Sente o suor frio que lhe brota das raízes dos cabelos. O tempo passa, zombeteiro, sem que nada aconteça.

“Estás acordado?”. Sem esperar pela resposta óbvia, a mulher atira nova pergunta, no mesmo tom distraído: “Queres alguma coisa?”. “Quero!”, grunhe ele, desesperado, “Quero sair daqui!”. “Ah!...”, é a lacónica resposta dela.
A mulher continua no seu vai-vem pelo quarto. Abre e fecha portas. Abre e fecha gavetas. Anda. Pára. Volta a andar. Mexe-se, desenvolta. O homem não aguenta mais. Grita! Uiva! Urra!
“Queres que te leia alguma coisa?”. O homem não consegue identificar a emoção que espreita por trás destas palavras. A mulher sai do quarto por um minuto e retorna com o portátil dele na mão. “Queres ouvir?”. Sem esperar pela resposta do homem, ela começa a ler.
…no momento em que a irmã se debruçou sobre ele para se servir de mais bacalhau com grelos, sentiu-lhe o cheiro a suor misturado com o perfume. Fez com que ela se servisse de uma dose extra, gozando o odor de cada um dos seus poros. Encheu-lhe mais vezes o copo de vinho, para fazê-la esvaziá-lo em seguida, porque sabia que ela não aguentava o álcool.O homem reconhece vagamente o texto, mas há qualquer coisa que não está bem… A mulher continua.
Ela ajuda a irmã a deitar-se no sofá, é impossível ir mais longe. Tapa-a com uma manta. Despede-se dos pais e sai com o homem. Sentado ao volante, com as veias encharcadas em álcool, o homem não controla o carro. Despistam-se. Embatem num muro. Ela perde os sentidos. Quando volta a si, olha para o homem que não se mexe. Uma ambulância leva-o. No hospital, dizem-lhe que o homem está tetraplégico.
“Claro que ainda não acabei...”, diz ela.

9.4.2007


- Anda Tó, anda!
O Tó avançava menos do que o que recuava. Podia perceber os preparativos em volta: tábuas corridas a servir de mesas, broas a cozer no forno, malgas dispostas em fila, prontas para receber o vinho, queijos de intenso odor, tudo isto num vaivém de saias, que às mulheres é que tocavam estas tarefas. Os homens dispunham-se a outras actividades, nas quais o Tó preferiria não ter participação.
- Vá que se faz tarde!
O Tó não se ralava nada em atrasar os planos, cada minuto conseguido era-lhe precioso. Mas quando os homens uniram forças, agarrando-o pelo pescoço, pelo corpo, pelos membros, enfim, onde calhava, ele compreendeu que já não poderia adiar mais o momento a que com todas as suas forças se esquivara. Chegado a onde os outros o queriam, já só teve tempo de ver, erguido no ar, o cutelo fatal. Ia haver chouriça!

9.4.2007

Corno


O Alfredo era um tipo que cuidava o visual: camisa aberta para deixar respirar o pelame, cabelos sob o controle da brilhantina, Old Spice a rodos pelo corpo todo, bigode sempre abaixo da linha inferior da boca e, a sua imagem de marca, cordão de ouro com um grande corno dependurado.
Quando passava em frente ao Café Sporting, inchava o peito aos comentários de "Ali vai o maior corno do bairro!", que Alfredo atribuía ao pendente oferecido pela mulher. O palerma, nunca percebeu que a prenda da mulher a que todos se referiam, era outra.

9.4.2007

Josefa


A Josefa, de rolos eternos na cabeça, bata às flores miudinhas, armações quadradas, de massa castanha, a suster umas lentes que lhe apequenam os olhos, chinelos orlados de um pêlo gasto, como de um rato tinhoso, mãos desbotadas pela lixívia e língua condimentada pela inveja, a Josefa, não se priva de espreitar-me por cima do ombro quando me sento ao computador, com ar de quem não diz, mas pensa “Lá está esta outra vez no ‘tequeleteque’! Deve achar que sabe escrever, a ‘dotôra’! Olhem-me p’ra isto! Pff!”.
E eu, encolho-me, para que os seus olhos mesquinhos possam atentar melhor no desastre que ocorre no monitor, que ela apenas pressente, pois não lê uma única letra, para que confirme o que já sabe, sobranceira, do alto dos seus chinelos puídos, para que o seu juízo dite o meu silêncio, de uma vez por todas.
Mas a Josefa disfarça, quando a encaro, rogando que desfira o golpe de misericórdia, que ponha a nu a minha torpe falta de talento, poupando ao mundo mais outro texto sem sabor. Ela disfarça e varre o chão com mais afinco, repara, subitamente, numa mancha que ali vê, mais por fé do que por acuidade de visão, raspa-a com a ponta da unha e sai.
Sai, deixando-me a sós com o monitor salpicado de bichos negros e incompreensíveis, que o analfabetismo da Josefa parece que se pega, e, sem me apoquentar com o que lá possa estar escrito, colo o dedo na tecla delete, desligo o computador e vou passajar as meias (sempre com fome de remendos) endireito os óculos, ajeito a bata, ponho um rolo que tinha descaído no sítio, escondo a alça do sutiã, teimosa e exibicionista, e deixo-me de ‘tequeleteques’.

10.4.2007

Bio-facsímile


Ela era uma Bio-facsímile de terceira geração. A sua cobertura, de silicone texturizado de alta definição, tinha todas as ramificações de uma pele de ente humano; o seu sistema coordenador central era de uma complexidade assombrosa; os terminais sensitivos eram extremamente apurados; os aparelhos locomotores eram de alta performance e a sua capacidade expressiva era impressionante, para uma criação de existência simulada.
Quando ele a viu na montra do seu terminal de conexão global, soube que tinha de tê-la. Nuno Vaz era um artista e, portanto, tinha uma existência underground, sempre iludindo as Autoridades do Desempenho Economicamente Relevante, ludibriando os fiscais dos Registos de Contribuição Social, apenas tolerantes para com os contribuintes da Gama de Excepção, como os Representantes das Organizações de Gestão dos Assuntos Públicos.
Sob um designativo pessoal falso, Nuno inscreveu-se para uma transacção de compensação equitativa da Bio-facsímile por tranches, fornecendo, para o efeito, um Número de Ubicação de Rendimentos forjado por contactos da Resistência Anárquico-Subversiva.
Recebeu, através de uma Companhia de Transportes Independente - as únicas que não mantêm um registo de localização de clientes - a primeira entrega da sua aquisição: um par de olhos num invólucro resistente a culturas parasitárias.
Nuno colocou os olhos numa pequena plataforma de transporte que trazia pendurada ao pescoço. Os órgãos da Bio-facsímile, embora isolados do resto da assemblagem, cumpriam todos os requisitos para os quais haviam sido desenhados. Dispunham de um sistema de transmissão de dados para o coordenador central da biofax (diminutivo de Bio-facsímile), o qual registava todas as percepções visuais dos órgãos oculares.
Os olhos da Biofax testemunhavam todos os instantes da vida do seu detentor, desde os mais íntimos e insignificantes, até aos passíveis de severa repreensão por parte das Autoridades Democraticamente Consentidas. Embora soubesse que isso constituía um risco grave, no seu interior, Nuno estava convencido de que nada tinha a temer por parte da sua Biofax.
Passado algum tempo, Nuno recebeu a segunda entrega, desta feita um set de dedos. Dado não ser ainda possível proceder à assemblagem do conjunto da Biofax, também os dedos vinham no mesmo tipo de invólucro dos olhos e, por conseguinte, Nuno não podia ter um contacto directo com os mesmos. Estes, contudo, registavam todas as impressões tácteis a que eram expostos, enviando-as, igualmente, para o coordenador central da Biofax. Os dedos seguiam todos os movimentos de Nuno e, durante a noite, repousavam sobre o seu peito, enquanto dormia. Com intervalos de tempo seguros entre as entregas, Nuno foi recebendo as várias partes constituintes da sua Biofax: os pés, os joelhos, o pescoço, as ancas, os ombros, as orelhas, as coxas, os braços, o nariz, as pernas, o peito, a cabeça e, por fim, a boca.

No dia da última entrega, Nuno não conseguiu dormir. Passou a noite sentado no meio do chão do armazém que acumulava as funções de habitação e atelier, olhando atentamente cada uma das fracções da Biofax. A partir do momento em que finalizasse a assemblagem, tudo mudaria, e ele, simultaneamente temia e ansiava por esse instante.
Aos primeiros sinais de iluminação exterior artificialmente gerada, Nuno levantou-se e iniciou o processo de assemblagem que lhe ocupou o dia inteiro. À noite, a Biofax estava, pela primeira vez desde que tinha sido submetida aos testes performativos e, posteriormente, remetida para as prateleiras do depósito de facsímiles idênticos a ela, pronta para funcionar em pleno.
Após alguns instantes em que permaneceu imóvel frente à Biofax, contemplando-a, Nuno aproximou-se de Bia (como apelidara a Biofax), colocou a mão direita por trás do seu pescoço e puxou-a suavemente para si. Era um espécime impressionantemente bem conseguido. Nuno sentia a textura e a temperatura de Bia em cada dedo da sua mão direita. Olhou fundo nos seus olhos e nada neles traía a sua origem cibótica. Olhou o nariz, levemente inclinado – a facsímile continha algumas imperfeições, para torná-la mais verosímil – a boca… Nuno não se atreveu, ainda não.
Aproximou o seu corpo do dela, lenta e inexoravelmente, sentiu as formas dela encostadas a si, um batimento ritmado proveniente do peito dela, o movimento da caixa torácica. Bia inclinou levemente a cabeça e Nuno roçou-lhe o pescoço com os lábios. A mão direita de Nuno descera já do pescoço e dobrara-se em concha, adoptando a forma do seio de Bia. O mamilo dela reagiu. A mão de Nuno continuou a sua descida pelo ventre, pelas ancas, até às nádegas. No regresso, a mão emaranhou-se delicadamente nos pêlos púbicos dela. Nuno perguntava-se se verificaria mais alguma reacção no corpo de Bia.
A distância a que estava do corpo dela – uns escassos centímetros – era-lhe já insuportável. Passou os braços por baixo das axilas dela e, com as mãos sobre as omoplatas, puxou-a para si, até sentir que já não havia mais distância. O seu sexo, ao contrário da boca, ainda relutante, estava pronto e decidido. Nuno penetrou-a e pôde verificar que a semelhança com os humanos se estendia ao íntimo de Bia. No último momento, teve medo de ejacular no seu interior e retirou-se. Bia tinha estado passiva mas cooperante. Dir-se-ia, paciente.

Não foi necessário, à BioFax, nenhum período de adaptação ao seu detentor, já que o tinha vindo a conhecer por meio de informações fragmentadas que o seu coordenador central sistematizara, formando um todo coerente, flexível, adaptável e mais preciso do que a consciência que Nuno tinha de si próprio.
À medida que Nuno se foi familiarizando com a presença de Bia, a lembrança de que ela era uma Bio-facsímile foi-se esbatendo, até quase desaparecer. A boca de Nuno conhecia já todos os recantos da dela e a única coisa que distinguia a sua relação sexual com Bia da de uma mulher era que aquela se revelava cada vez mais plena. Aliás, toda a interacção com a Biofax se revelava satisfatória para além de todas as suas expectativas. Bia conhecia o trabalho de Nuno, compreendia-o melhor que ninguém, apoiava-o, assistia-o, criticava-o, inspirava-o, enriquecia-o. A nível pessoal, Bia supria todas as necessidades do seu possuidor.

Tinham decorrido cerca de dois meses desde o dia da assemblagem da Biofax, quando Nuno se apercebeu, de súbito, de que tinha deixado progressivamente de trabalhar e de que passava todo o seu tempo perto do corpo de Bia, numa distância cada vez mais ínfima, quase imperceptível. Nuno deu-se então conta de que se tinha vindo a instalar no seu íntimo um desconforto relativamente a Bia e, a partir daí, esforçou-se por descobrir a razão, aparentemente despropositada, desse sentimento.
Bia era tudo o que Nuno sempre sonhara e muito mais. Não havia nenhum aspecto da sua vida que não tivesse sido melhorado pela simples presença da Biofax, que adivinhava a sua mais insignificante necessidade, vontade ou simples capricho, ao ponto de já não restar nenhuma necessidade que não tivesse sido suprida, nenhuma vontade incumprida, nenhum capricho insatisfeito. Nada por preencher, satisfação total.
Com a desculpa de uma sobrecarga nos níveis de energia consumidos, Nuno explicou a Bia que teria de desmontá-la, temporariamente. Solícita como sempre, Bia assentiu. Nuno devolveu cada fracção da Bio-facsímile ao seu invólucro protector, revivendo as memórias que lhes estavam associadas. Com gratidão, mas sem pena, Nuno regressou à sua existência solitária, insatisfeita mas repleta de desejos.

16.4.2007

Mané


Augusto Manuel, homem apreciador das coisas boas da vida, que para ele eram um bom copo e um bom rabo, olhava com desgosto o seu filho mais velho, Eduardo Mané. O rapaz, desde que vira um bailado na dois, andava-lhe aos rodopios saltitantes pela casa.
Guto, como era familiarmente conhecido, para tentar inverter os estragos, arrastara o rapaz por tascas, onde vozes roufenhas cantavam fados malandros, enchendo-lhe generosamente o copo e fisgando, pelo canto do olho, a fêmea de serviço encostada à parede em frente da tasca. Por mais que Guto enfiasse notas nos decotes das experientes mulheres da vida, por mais que procurasse variar a oferta, com novas e velhas, gordas e magras, loiras e morenas, à pergunta de “Então, então, o rapaz?”, seguia-se invariavelmente um encolher de ombros e um sorrisinho malicioso da mulher de serviço.
A coisa já começava a ser comentada no bairro, valendo ao primogénito o expressivo diminutivo de Dudu. Guto, a quem as sovas na mulher começavam a não bastar para lhe acalmar os ânimos, tomou então uma medida drástica: alistou o Dudu na marinha. Se lá não fizessem dele um homem, em mais nenhum sítio o fariam.
Usando uma das duas únicas técnicas persuasivas que conhecia - o afogar resistências em tinto (a outra reserva-a para a mulher, de físico menos desenvolvido que o dele) - enfiou o rapaz num navio, numa madrugada de Dezembro, dias antes do Natal.
Durante o tempo em que o filho andou no mar, ao Guto Mané arrebitaram-se-lhe as pontas dos bigodes, entre outras coisas e o seu dinheiro, ganho a engraxar sapatos à porta do Ministério da Justiça, foi dado como bem empregue nos balcões de mármore das tascas e por entre as mamas das mulheres da rua.
A felicidade acabou-se quando o navio em que embarcara o Eduardo Mané atracou no cais, um mês depois. O filho, tostado pelo sol - lá isso não se podia negar - regressara com mais um apodo na bagagem, o qual resumia bem a sua curta carreira na marinha: Dudu do Tutu.
Desde essa altura, os bigodes do Guto murcharam tanto que até a Eugénia, o saco de boxe com quem casara, sentiu qualquer coisa próxima de simpatia por ele. Eugénia, como tantas outras esposas, depois que o marido baixou os braços, rendido, tomou o caso entre mãos. Ligou ao irmão, de quem o rapaz herdara o nome e, pelos vistos, mais qualquer coisinha, pedindo-lhe ajuda.
O tio Eduardo, de costumes duvidosos e coração ansioso por reparar os danos que causara na família, acudiu a casa da Eugénia, num dia em que estava de folga no Cabaré. Dudu, ao ver, pela primeira vez na vida, o tio materno, simpatizou imediatamente com ele. Que modos delicados, os dele! Nada abrutalhados, como os do pai. E que cútis tão cuidada!
Não foi preciso insistir com o rapaz para que fosse viver com o tio e tentar a sua sorte como performer – termo com que o tio se designava a si mesmo, talvez para desviar a atenção das plumas e lantejoulas que usava no palco.
Assim que transpôs a porta do Cabaré onde trabalhava miss Fournier, nome artístico do tio, Dudu soube que tinha encontrado o seu lugar. O rapaz tinha boa voz, corpo delgado, como o da mãe e, no que dizia respeito a movimentar-se, mais graça do que a mais graciosa das mulheres, e não tardou a criar fama na noite da capital. Chegou mesmo, num espectáculo de variedades, a aparecer na televisão. Que mais poderia ele desejar?
Eugénia não o voltou a ver desde a vez em que passou na tv e guardou um secreto orgulho pelo filho, tão dotado para a vida artística. Quanto ao Guto Mané, o episódio com a marinha desmoralizou-o permanentemente da cintura para baixo, motivo pelo qual, depois das noitadas, já não lhe sobrava genica para as fêmeas nem para o exercício de bater na mulher. Dudu, esse, descobriu que por trás de um desajeitado homem se esconde, por vezes, uma esplêndida mulher.

7.5.2007

Olhando para trás

(a partir do quadro homónimo de Paula Rego)


A culpa era dela, ela nas várias idades. Dos seios dela, que se amontoavam sobre as costelas, das ancas dela, que se arredondavam, da sua condição de "cortada ao meio".
Aquele corte... era preciso que fosse rasgado, numa empreitada. Mas que não sentisse prazer. O prazer era uma coisa obscena.
O gozar do corpo dela, isso era uma coisa justa, pois que estava ali. E ele podia tomá-lo.
Encavalitava-se na cama para pegar no cão, sem o mínimo cuidado em ocultar as coxas, o rabo por cima delas, as costas por onde seguia a sua fisicalidade. Essa desocultação tinha de ser punida, punida e aproveitada.
Ele trataria disso. Tinha tudo o que era preciso. Tinha, inclusive, a consciência a jeito para limpar-se no fim.
Seguia, sem escrúpulos, os seus desígnios coxas adentro, garganta abaixo. Ela que engolisse, ela que o engolisse. Nada mais apropriado para uma boca do que dentes de leite.
Ah, a nívea oblação sobre o altar tenro daquele corpo! A viril oferenda ao deus decrépito que com certeza venerava!
Estupor!
Estupro!

Olhando para trás, a culpa era toda dela, ela nas várias pequenas idades.

23.5.2007

O merceeiro


A mina do lápis vermelho espreita a custo por entre a madeira. Antes, ele havia cravado a lâmina do canivete na fibra vegetal, morta para servir. Molha a ponta na ponta da língua. Escreve, arrastando pelo papel um fio de cuspo, uma linha de baba.
Escreve devagar, está mais habituado aos números. Primeiro a data, como se fosse preciso. Depois...
Depois o nome. Firme. A mão grossa retesando-se em redor do instrumento da escrita, subindo letra acima, descendo letra abaixo. O nome.
Antes saía-lhe melífluo pelos lábios, como compota de frutos silvestres. Agora, o bico do lápis asperizando as letras na imensidão do papel.
Geógrafo no seu mapa privado, traça a linha da fronteira entre o lado de cá e o de lá. Usa mais força do que a que é preciso. Fica a marca em todas as folhas que irão seguir-se.
Esgotado, o bico do lápis tem de ser retirado do pau a golpes de canivete. Corta-se.
Calha bem. Agora é preciso que escreva a vermelho, encabeçar territórios. Dever e Haver.
Na coluna do Dever, o nome dela. Na coluna do Haver, nada.

25.5.2007

Bchhh, Bchhh


(Outra vez! Outra vez as toalhas espalhadas pelo chão! Mas que raio de mania! Já estou farta disto. Qualquer dia...)
Bchhh, bchhh
(... e a cama cheia de pêlos, por todo o lado. Não há quem aguente.)
Bchhh, bchhh
(E claro que só come aquilo que quer. Comer alguma coisa diferente, nem pensar!)
Bchhh
(E agora, no verão, é um calor. "Deslarga!", digo-lhe eu, mas nada. Puff!)
B...
(Estava tão bem sozinha...)
Bch...
(... não ter de limpar-lhe o toilette, com aquele cheiro...)
B...
(Ah, não ter que dar sempre um bocado de tudo o que como...)
Bchhh!
(... não me preocupar se demoro mais tempo na rua...)
Bchhh, bchhh, bchh!!
(... poder até ficar uns dias sem vir a casa sem sentir remorsos!)
BCHHH!
(AH! Que paz que seria!)
Bchhh, bchhh, bchhh!
............................................
BCHHH, BCHHH, BCHHH!
............................................

Pronto, mais outro gato que se foi. Que solidão que é...

9.8.2007

Missing


Foi nos primeiros dias de Setembro. Marina levantou-se da cama, à hora do costume e foi até à cozinha preparar o pequeno-almoço. Ligou o rádio, mas o aparelho não emitiu qualquer som. Pensou se seria das pilhas, mas lembrou-se que o rádio funcionava por ligação à corrente. Perguntou-se se teria falhado a luz, mas bastou-lhe accionar o interruptor da cozinha para verificar que assim não era. Talvez o rádio fosse chinês, conjecturou, incapaz de se lembrar de onde o tinha comprado. Abriu então o frigorífico, mas estava vazio. O mesmo se passava com os móveis da cozinha, onde guardava os víveres.
Dirigiu-se ao quarto para se vestir, tinha de ir trabalhar. Tomaria qualquer coisa na rua e depois do trabalho iria às compras. Ao abrir o armário, contudo, o mesmo vazio que nos móveis da cozinha. Pegou nas roupas que tinha vestido no dia anterior e que estavam sobre a cadeira do quarto, vestiu-as, confusa, e saiu.
Já na rua, apercebeu-se de que tinha deixado a carteira em casa. Sem as chaves do carro, o qual, aliás, também não conseguia encontrar, nem dinheiro para transportes, não poderia ir trabalhar. Tocou à campainha do vizinho, para que lhe abrisse a porta do prédio e a ajudasse a abrir a porta de casa, mas aquele não atendeu, como, de resto, não atenderam todos os outros.
Sentou-se no degrau da entrada, sem saber o que fazer a seguir. Pouco depois, chegou o vizinho de passear o cão. Ela cumprimentou-o, obtendo em resposta o silêncio. Sem perceber o que se estava a passar, teve, ainda assim, suficiente presença de espírito para aproveitar a porta aberta e entrar no prédio.
Subiu as escadas, atrás do vizinho. Ao chegar ao andar em que ambos moravam, o seu espanto não podia ser maior: a porta do seu apartamento desaparecera. Mais! O seu apartamento desaparecera. Disse qualquer coisa ao vizinho que, parado em frente ao apartamento dela, olhava, atónito, o vazio. Mais uma vez, ele não deu sequer mostras de a ter ouvido. Apercebeu-se então de que o cão dele estava exactamente no mesmo sítio que ela. Aliás, dizer “no mesmo sítio”, nem sequer era correcto – o animal estava NO sítio dela, tal como o vizinho, ao virar costas para voltar a descer as escadas. Atravessaram-na, ambos, sem que ninguém sentisse nada.
Foi nos primeiros dias de Setembro que leu no jornal local acerca do misterioso desaparecimento de um apartamento e da sua ocupante. Lembrava-se, porque tinha sido uns dias antes que Nuno partira.

5.9.2007

Vegetable Dinner


Não, o olhar dela não queria saber dos dedos que descascavam batatas: tinha-se deslocado, irremediavelmente, de toda e qualquer parte do corpo dele. Não lhe interessavam os seus movimentos, as suas idas e vindas, as suas formas, as suas sensibilidades. De resto, o alheamento do olhar dela comungava do desinteresse do resto dos seus orgãos perante aquela massa que ocupava pedaços do seu espaço doméstico, ora na sala, em frente ao fogo moribundo, ora na cozinha, no lugar da mesa oposto ao seu, ora na casa de banho, tapando os azulejos desmaiados, ora na cama, onde se avolumava para além do limite do suportável.
O seu cigarro ocupava-lhe a boca, as mãos, o pensamento, esgotava-lhe os desejos. Sorvia o objecto do seu interesse, sentia-o descer pelo interior do seu corpo, habitando-o plena e pacificamente. Sim, concentrava a sua vontade e atenção no pequeno cilindro de papel e isso bastava-lhe.

12.9.2007

Ausência


Toda a família está reunida. Falam pouco, mas também, nunca nenhum Alves saiu falador. A Alzira traz um tabuleiro com umas chávenas de chá e umas bolachas de água e sal, para o caso de alguém querer, mas só o Quinzinho, sempre guloso, lhes deita a mão.
A minha mãe folheia o álbum de fotografias, relembrando tempos idos. O meu cunhado, apercebe-se de que o Quinzinho traz, vestido, um colete meu: “Vai já tirar isso!”, ralha. O Beto era militar e tudo o que lhe saía pela boca fora, era uma ordem que não admitia desobediência. O meu filho corre até ao quarto e aí, insubordina-se em segredo, mantendo o colete vestido.
A Tina acaricia a barriga, grande de oito meses. A princípio, todos temeram que o bebé nascesse antes de tempo, mas a criança lá se aguentou onde estava.
A Alzira, agora, está nervosa; irrequietam-se-lhe as mãos quando não estão ocupadas. Gostava de poder dizer-lhe umas piadas, daquelas que sempre lhe arrancam um risinho quando está triste, mas não creio que consiga ouvir-me com toda a terra que me deitaram em cima, as flores e o caixão de carvalho maciço.

1.10.2007

Sex and cigarettes


Sorvia o fumo até se lhe inundarem os pulmões, deixando escapar o resto pelos lábios entreabertos. A luz apagada, a cadeira posta em frente à varanda aberta para a avenida, àquela hora, sem movimento, as pernas estiradas. Os olhos esquecidos da janela da frente, com os estores corridos, à qual dedicara tanta atenção nos últimos tempos. Só o fumo lhe merecia atenção. Uma boa metáfora, o cigarro, pensava ele. Fuma-se, sofregamente, até queimar por completo papel e tabaco e, no fim, não fica senão um gosto amargo na boca. Esmaga-se a beata, no cinzeiro ou onde calhar, e não se pensa mais no cigarro. O fumo esvai-se, não tem peso. Tal como a vizinha da frente.

7.11.2007

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Vícios


Hoje ela chegara a casa, despira-se e tomara um banho de imersão, após o qual se estendera sobre a cama, completamente nua.
A ele era-lhe muito difícil não tocar a sua pele macia e morena, perfumada pelo banho. Teria que deixá-la dormir, sabia-o bem, e contentar-se em olhá-la. Foi até à cozinha servir-se de um copo de vinho fresco, regressou à sala e saboreou o vinho demoradamente - ela não acordaria tão cedo.
Já tinha anoitecido quando ela despertou. Sem perceber que estava a ser observada, tirou várias roupas do roupeiro, antes de se decidir por uma. Vestiu-se, secou o cabelo, pintou-se e saiu.
Sozinho em casa, ele preparou algo de comer e jantou em frente à televisão, tão desatento aos programas quanto às garfadas de comida que metia na boca. O seu pensamento estava junto dela; aguardava ansiosamente pelo seu regresso.
Uma motorizada que passou na rua acordou-o mesmo antes de ela entrar em casa, passava das quatro. Ele resignava-se a imaginar por onde ela teria andado e com quem. Obviamente não poderia perguntar-lhe nada. Se o fizesse, teria que explicar-lhe porque é que ele, um perfeito estranho, a espiava com um telescópio do prédio em frente.

18.4.2008

Quando ainda era uma vez


De início lia o que ele escrevia e, mais adiante, passou a acompanhar o trabalho plástico dele. Era bom. Vinha das entranhas. Nos desenhos e na escrita, o mesmo caudaloso talento, de cortar a respiração.
Juntando tudo o que conhecia dele, ficava com muito pouco. Mas esse pouco foi o suficiente para já não conseguir desligar-se dele, para nem sequer desejar fazê-lo. Pressentia nele uma sensibilidade especial, única. Ninguém dizia as coisas como as dizia ele, ninguém traduzia plasticamente a realidade - ou o sonho - do modo como o fazia ele. Por trás da palavra e do traço, adivinhava-lhe uma humanidade, às vezes pungente, às vezes hílare, mordaz, lúcida, interveniente.
Do consumo da obra, passou a desejar a prova do autor. Sentia que lhe faltava um braço se não tinha o braço dele, que lhe faltava um olho, se os olhos dele não a acompanhavam, que se lhe secava a língua, sem o contacto da língua dele. Sentia-se truncada. Desejava a corporeidade dele, a presença, a proximidade.
Mas havia o medo. Receava ter um corpo oco para oferecer-lhe, não ter a imagem adequada, levar uma existência repleta de tédio, de fatuidade. E prendê-lo num quotidiano corrosivo, desbotado. Debatia-se, a toda a hora, entre a vontade e o bom senso, num vaivém de posturas, numa indecisão que a desgastava. Consumia-a o não conhecer o fundo dos anseios dele, o não poder medir-se à luz dos seus desejos.
Passou a submeter-se a um exercício de contenção, obstruindo a passagem aos seus impulsos que sempre eram em excesso. Para refrear-se, socorria-se do passado, solícito em tolher aspirações, que nunca a decepcionava quando se tratava de dissuadi-la de algum voo mais ousado. Apequenava-se, encolhia-se o mais que podia, para não sobrar dimensão alguma que a desilusão alheia pudesse podar.
Quando ela já não tinha mais tamanho de que desfazer-se, conheceram-se os dois e desabrocharam à luz do sol da boca um do outro. Mas eis que, pegajosa de saliva, soou a palavra impossível, a que ateia fins a todos os começos, e a realidade, avessa a somas e produtos, nos deixou números fraccionários. E assim, matematicamente, terminámos.

25.5.2008

Visão doméstica


Ela ali estava, casaco de malha pelos ombros, pés acomodados em pantufas, olhar com a distância dos prédios em frente. O seu horizonte é rectangular, todo em tijolo e betão, com estrelas de plástico segurando as roupas que pendem das cordas.
Agora que é noite, pôde virar as costas à cozinha, cuja luz lhe alumiava o descanso. Ali, desde a sua cadeira de lona ao fresco da noite de Junho, ela esperava. Esperava que ao esbranquiçar-se o cabelo, já não tardasse a morte.

22.6.2008
História de amor com fim

Tinham sido dez horas de viagem para chegar a mim e, sentado a uma mesa do snack-bar imundo da rodoviária, ali estavas tu. Queria ter-te rodeado o corpo de braços e beijado os pêlos das barbas logo ali. Mas ainda não.
Saímos e levei-te ao trinta e seis da minha rua, cuja janela te vinha entreabrindo clique a clique. Uma vez aí, conferiste os espaços, conferiste-me as medidas e tomaste-me, reiterando desejos (lembras-te? Era uma toalha aos quadrados estendida sob os pinheiros, onde comeríamos a merenda e o corpo um do outro, um carro pago às prestações e um T2 com vistas para as traseiras de outros prédios, paredes-meias com outros casais, como nós, contentados com o seu viver).
Tal como acordado, foste pintando-me as paredes de criaturas marítimas. Durante esses dias, buscaste soluções para os meus inúmeros problemas, suportaste-me o cansaço e a tristeza instalada, encaraste-me os clientes, ocupaste-me a loja. De tintas e odores impregnaste o sítio. E um dia, em amorosa tarefa, rapaste a barba e descobri-te o queixo e nele concentrada toda a minha vontade de ti.
Chegou a festa à praça e bebemos cerveja no meio do povo que dançava conforme o modelo no palco. A seguir quisemos ir devorando lugares e aterrámos no exterior do palácio onde tivemos fome um do outro e, depois da carne, jantámos vegetariano num terraço em frente - sabe-me ainda a língua. Passámos pela casa da tua família, perdemo-nos no caminho, usando a boca para cantar e contar beijos.
Noutra altura fomos visitar paredes cobertas de tintas famosas, à beira Douro, vasculhar jardins encomendados e as ruínas fabris que ficavam vizinhas, caía já a noite. Fomos também, noutro dia, ao porto de Leça cheirar maresias, e lanchar em Serralves, onde diziam que se expunha arte. Duvidei mas ainda assim gostei, porque a companhia, sabes, era a tua. Comeste francesinhas e quis, por força, discutir contigo um qualquer estéril assunto teórico, de que não ficou lembrança. Apanhei-te as mãos com a câmara enquanto desenhavam, como é de seu hábito e necessidade. Como gostava de ficar a ver esse parto de imagens que te consumia - parecia-me que te via por dentro.
Durante todo o mês de Junho andámos pelas ruas do centro de Braga, deixando rastos de cheiros, como os bichos, reconhecíveis ainda hoje, ainda agora pungentes. Reflectimo-nos nas montras das lojas, como prova de existência conjunta, fotografámos a esmo, registando lugares, percursos, momentos, num álbum agora obsceno de caducidade.
Esgotado o mês, terminaste o trabalho por encomenda e regressaste à tua ponta do país, a retomar assuntos interrompidos. Interpuseram-se muitos dias e quilómetros entre nós e só já entrado Agosto voltaste.
Foi então que planeámos futuros nados-mortos. E tudo porque há anos se me havia rasgado o ventre de maculada concepção e o seu fruto crescia entre nós. Sim, pertence-me a descendência, pertence-me e possui-me, só quem não pariu não entende.
Naquele último dia não compreendeste porque é que me deixei ficar na varanda, à mercê dos poios esbranquiçados das pombas que me velam o telhado (apesar dos passos da gata, de que provavelmente desdenham). Fui eu, achaste tu, quem redesenhou o nosso porvir, quem o declarou inviável por excesso de maternidade. E partiste logo ali, sem remissão, sem possibilidade, desfazendo-te do fardo que era tecermos, boca-a-boca, horas próprias.
E agora rendem-se-me os braços, cansados como estão de procuras em vão. Ficaram para trás, apagados da areia pelas águas furiosas do mar, as pegadas mútuas que o entretanto tão absurdas tornou. Curou-se me o vício de questionar-me ao som de uma canção de Lenine e de resto, se queres saber, ficou o que de ti gostei.

27.10.2008

Especulações


O espelho sempre fora honesto com Mercedes. Sempre lhe mostrara os braços curtos, as mãos pequenas, de quem fica sempre a um palmo de alcançar os seus desejos.
Não lhe ocultava, o espelho, que os anos se iam sedimentando sobre o seu corpo, tornando-o familiar e estranho, ao mesmo tempo.
Também pelo espelho conseguia ver os móveis desabitados em todas as divisões da casa, a campainha da porta a ganhar pó.
À noite, sentada defronte da janela virtual, o espelho sabia quem Mercedes via. E ao devolver-lhe a imagem, não deixava de lembrá-la da loucura do seu desejo.
Um dia, Mercedes, cansada do espelho, virou-o de costas para a parede.

6.10.2008

amo-te


Amo-te. Não me importa a inconveniência do sentimento, amo-te.
És capaz de achar divertido. Ou arrepiante. Ou despropositado. Ou mesmo ridículo. Talvez olhes para o lado, tentando imaterializar as palavras por força da ausência do teu olhar. Talvez dês uma gorjeta ao rapaz do café. Ou então talvez assobies a caminho do emprego.
Seja como for, levarás o meu sentimento. Foi por isso que ontem, enquanto estavas na fotocopiadora, meti o papel no bolso do teu casaco, para que no dia seguinte, ao resguardares as mãos do frio da manhã, encontrasses lá a minha boca, na minha melhor caligrafia, dizendo em letra pequena: amo-te.

8.10.2008

Not Jekyll & Hyde


Não havia ali nenhuma droga experimental, nenhum mérito científico, nenhuma ilusão; não lhe nasciam pêlos hirsutos no corpo nem lhe cresciam garras nas pontas dos dedos.
Mas a besta estava lá, devorando-o por dentro, forçando-o a soltar gritos arrepiantes. Sentia as entranhas esfacelarem-se, sangrava copiosamente no seu íntimo.
E no entanto, exteriormente, quase não havia sinal da carnificina que tinha lugar no interior. A não ser, talvez, no olhar vago, desprendido das coisas visíveis, para dedicar-se em exclusivo à dilaceração que sofria.
Estava, sabia-o, para além de qualquer salvação possível. Ainda que o calvário que suportava lhe concedesse um minuto de descanso, ser-lhe-ia inútil pedir socorro. A besta, o inominável, era ele próprio.

9.10.2008
Maçãs de Junho

Era Junho e vou imaginar maçãs, mesmo adiantando a época. Seriam vermelhas, de travo doce e ácido. Eu estenderia o braço e seria curto o percurso da árvore à boca. E haveria o sol, atirado de folha em folha, numa gama de verdes e amarelos. Zumbiriam as moscas, a relva seria tenra e o céu quase que pequeno para tanto azul.
Claro que também poderia falar do mar - lembro-me de uma noite em que havia o mar - abafando risos com o rebentar das ondas. Aí, o sol bateria em pleno sobre a pele amorenando-se, aturdindo os corpos que ansiariam por banhar-se no mar. Tu sabes que seria gelado, mas isso não descomporia o retrato.
Mas seria sempre, como foi, Junho, e amar-nos-íamos.

11.10.2008

Da solidão


Só pode ter sido da solidão. De todos aqueles lugares vazios em volta – na mesa, enquanto comia ração para um, no sofá onde as gargalhadas orginadas por um progama na tv soavam uníssonas, na cama, onde apagava a luz sem despedidas, sem desejos de dorme bem.
Vira-o por várias vezes no autocarro, nariz sempre enfiado num livro, até que um dia calhara sentar-se em frente dele. De repiração suspensa, reparou na coincidência da capa, igual à que repousava na mesa de cabeceira dela. Liam as mesmas palavras!
Já em casa, segurava, de mãos trémulas, a sua cópia do livro, incapaz já de ler com os seus olhos e de pensamento preso nos olhos dele, cuja cor, afinal, ignorava, por terem estado sempre protegidos do que o rodeava pelas pálpebras que dirigiam o olhar unicamente para as folhas do livro.
Começou a imaginar, para além da coincidência das capas, uma coincidência de leituras e de sentimentos despertados por elas. Tinha consciência do absurdo, mas ao virar-se, na cama, de livro na mão, a almofada deserta convencia-a a buscar-lhe uma cabeça para se pousar nela, e a dele parecera-lhe tão comovente...
Continuaram durante alguns dias as viagens do corpo no autocarro e as da imaginação nos móveis de casa.
Num Domingo, tinha ela acabado de entrar no autocarro para ir ao centro da cidade, repara nele, mãos ocupadas não com um livro, mas com outras mãos – umas só um pouco mais pequenas que as dele, de mulher, e outras de criança.
Desde então, continuam a coincidir no autocarro, mas ela já não empreende viagens com ele ao chegar a casa, mesmo que continue a espreitar as capas dos livros que a ele lhe passam pelas mãos.

13.10.2008

A riqueza de Sebastião (se um dia tivesse ganho a lotaria)

Chegou um dia em que Sebastião decidiu alargar os limites de sua casa até quase o infinito. Passou a ter cama dura e a não ter onde pendurar fosse o que fosse, por falta de paredes. As despesas de iluminação e aquecimento passaram a ficar por conta do universo, as de alimentação, da generosidade alheia.
Por ter aumentado exponencialmente o número de vizinhos, sentia-se à vontade para abordar qualquer um deles, como fez comigo no dia em que fui à Clínica confirmar o recheio do ventre. Era Agosto e tocou-me com o dedo nas costas, assegurando-me que não devia temer o seu aspecto andrajoso. Pedia uma moeda. Em troca, amealhava versos.
Durante anos, Sebastião não forneceu aos correios um endereço onde pudessem entregar-lhe a correspondência, vivia à solta por aí. Certa noite, passava em frente a um quiosque quando reparou num papel no chão. Precisado de suporte para versejar, recolheu-o, como era seu costume. Ao examiná-lo para averiguar se se prestava à sua necessidade, percebeu que se tratava de um bilhete da lotaria instantânea. Alguém sequioso de informação devia tê-lo deixado cair de entre molhos de revistas ou jornais. Sentiu curiosidade em ver até onde estava o destino, que o tinha feito deparar com a lotaria, disposto a ir. Raspou o bilhete com a unha grossa e suja e descobriu que o destino estava disposto a ir até ao fim. Guardou a raspadinha no bolso e, nessa noite, os seus pensamentos rodaram em torno dos caminhos que escolhemos para andar e aqueles por onde a mão caprichosa do acaso nos quer levar.
No dia seguinte, os passos de Sebastião sabiam onde deveriam levá-lo. Foi ao quiosque entregar a lotaria e reclamar o prémio. Para recebê-lo, pôs, contudo, uma condição: queria-o em notas pequenas.
Já de posse da sua modesta fortuna, Sebastião sentou-se na paragem de autocarro onde era frequente encontrá-lo e sacou de um toco de lápis. Trabalhou com afinco durante todo o dia e ainda parte do seguinte. Chegada a hora de ponta, começou a distribuir a sua poesia pelos transeuntes, feliz por ter, inesperadamente, tantas notas onde escrever.


P.S. Foi verdade que existiu um Sebastião em Braga que me tocou naquela altura e daquela forma no ombro e que, sem casa por opção, enriquecia com cada verso. Esta é a minha moeda.

18.11.2008

Salão Paraíso


Ele ali está, sentado na mesa do canto, omnividente. Peço um café e uma nata para levar, tentando subtrair-me rapidamente à sua atenção. Já não suporto aqueles olhos enormes a quererem que eu caiba neles. No outro dia mandou-me pelo empregado um daqueles guardanapos que dizem "obrigado pela sua visita". Que patético!

Fica para ali sentado, todas as tardes, à espera, com certeza, de poder ver-me no intervalo do lanche, quando deixo as cabeças em transição do moreno para o loiro ou do encaracolado para o liso, numa busca barata de uma nova identidade. Qualquer dia é bem capaz de seguir-me ao sair do salão e de forçar a entrada no meu prédio, ou então de passar a espiar-me, escondido atrás dos carros, esperando ver-me passar lá em cima através da transparência das cortinas.

Volto apressada para as senhoras em fila às portas do fim de semana, desejosas de agradar a maridos que nunca dão por elas ou de captar a atenção de algum divorciado na avenida, tão necessitado de companhia quanto elas. A minha missão é proporcionar-lhes a beleza escolhida nas revistas cor de rosa, como se os penteados fossem meio caminho andado para as vidas dos famosos; mal sabem elas que também as celebridades dormem em quartos escuros de casas demasiado grandes. Mas à sexta-feira acreditam sempre e eu pactuo com o seu acto de fé.

À hora de fechar, sigo, despenteada e descrente, para o meu apartamento. Meto uma refeição pré-cozinhada no micro-ondas e mastigo-a na companhia dos apresentadores de tv. Antes de deitar-me, espreito pela janela, não vá o tarado do café estar lá em baixo e eu ter vontade de chamá-lo, para aplacar o meu vazio e recompensar-lhe a dedicação, àquele filho da mãe a quem todas as noites, na intimidade do meu quarto, deixo que me coma com os olhos, saciando por fim a fome de ambos.
25.10.2008

T. Que pena que a massa de que sou feita não seja capaz de manter unidos os tijolos de uma casa. Queria para ti esse céu concreto, prot...