sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O merceeiro


A mina do lápis vermelho espreita a custo por entre a madeira. Antes, ele havia cravado a lâmina do canivete na fibra vegetal, morta para servir. Molha a ponta na ponta da língua. Escreve, arrastando pelo papel um fio de cuspo, uma linha de baba.
Escreve devagar, está mais habituado aos números. Primeiro a data, como se fosse preciso. Depois...
Depois o nome. Firme. A mão grossa retesando-se em redor do instrumento da escrita, subindo letra acima, descendo letra abaixo. O nome.
Antes saía-lhe melífluo pelos lábios, como compota de frutos silvestres. Agora, o bico do lápis asperizando as letras na imensidão do papel.
Geógrafo no seu mapa privado, traça a linha da fronteira entre o lado de cá e o de lá. Usa mais força do que a que é preciso. Fica a marca em todas as folhas que irão seguir-se.
Esgotado, o bico do lápis tem de ser retirado do pau a golpes de canivete. Corta-se.
Calha bem. Agora é preciso que escreva a vermelho, encabeçar territórios. Dever e Haver.
Na coluna do Dever, o nome dela. Na coluna do Haver, nada.

25.5.2007

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