sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

T.

Que pena que a massa de que sou feita não seja capaz de manter unidos os tijolos de uma casa. Queria para ti esse céu concreto, protegendo-te dos caprichos do tempo e conjugações no plural.
Fica, em vez disso, o amor todo que te tenho, essa morada perene de músculo sob abóbada de osso. Desejo ardentemente que te seja chão suficiente.

20.3.2018
Cornélia

Cornélia queria ser beija-flor. Queria, de entre todas as aves, o voo leve daquele pássaro que colhia pólen de uma flor e, com seu beijo, o deixava noutra, como que florindo ele também.
Como poderia tão maciço corpo, dotado de quatro estômagos para que não duvidasse da sua natureza ruminante, ter devaneios alados? Como haveria, quem passa o tempo produzindo estrume, de ser capaz de voo subtil?
Cornélia sabia da sua bovinidade, mas por um instante, enquanto sonhava, sentiu que se lhe elevavam os cascos.


25.2.2018

Alice


Alice esqueceu aquele dia, precisamente por ser inesquecível.
O tio levara-a na sua carrinha até uma praia a onde se chegava atravessando a ria por uma ponte de madeira. Junho ainda há pouco começara e o calor ainda não levava embalo.
Alice ia à frente, expandindo o olhar pelo horizonte que mudava a cada tábua pisada. O tio seguia-a, fazendo pontaria às costas dela com a máquina fotográfica. Absorta a devorar a paisagem, Alice não sentia os disparos.
No fim da ponte, de repente, a praia. A praia e tudo o mais que veio a seguir. A dor, a vergonha, o medo, a confusão, a raiva. Alice queria ter-se metido num buraco. Como não pôde, escavou um nos confins da memória, onde enterrou a lembrança do dia em que o tio a obrigou a ser mulher.

7.2.2007

Céu de papel


Como podia o cigarro manter a chama acesa num dia tão encharcado, era algo que Gonçalo não perdia tempo a tentar decifrar; já o incêndio a que se fintava aquele céu de papel, tinha fácil explicação: era a chuva, de um tamanho miudinho mas persistente, que aguava todos os intentos de atear fogos na paisagem. Porque é que Gonçalo desejava purgar com labaredas aquele lugar, só poderia ser compreendido mantendo o espaço, mas recuando no tempo.

Arados, tinham sido os seus pés, sulcando trilhos naquele monte e no vale onde desaguava. Na ausência dela, preparara os caminhos para que, quando chegassem os seus passos, florissem espigas, para que, ao voltar a casa, levedasse o pão.
De margaridas vestia a mesa da cozinha, alimentando-as a água da torneira vertida num copo; com sopa e verduras acariciava o estômago dela e, à noite, adormecia saciado do seu cheiro.
Pensava ele que eram felizes, que o contentamento que sentia se estendia a ela. Nunca reparou no olhar ausente que trazia no rosto, nos braços laços com que o rodeava na cama, nas verduras deixadas na borda do prato. E por isso, quando a viu pisar os caminhos que ele semeara, acompanhada de pés estranhos, não compreendeu a leveza no andar dela, o brilho dos cabelos que ao pé dele nunca soltava, as mãos que afinal gostavam de agarrar-se a outras.

Passaram-se meses, mas Gonçalo ainda procura, nas nervuras dos troncos das árvores, na espessura da lama dos charcos, nos ramos de onde se ausentaram as folhas, a razão para os passeios daquela que amava terem trocado de companhia.
«Havia aquela expressão, claro - "Mais vale só do que mal acompanhado". Sim», pensou Gonçalo, «se ela não era capaz de apreciar os meus cozinhados, se os seus cabelos não encontravam espaço, junto de mim, para soltar-se, mais vale ter-se afastado. Eu... Eu estou bem assim. Ocupo os dois lados da cama, uso as almofadas sobrepostas, não tenho de mudar de canal nem de emissora para agradar-lhe; não tenho que fazer nenhum esforço para mantê-la ao meu lado, para sentir o odor familiar da sua pele ao acordar, para rechear da sua voz os meus ouvidos. Estou bem, assim, neste silêncio, nesta cama fria, nesta mesa posta em números ímpares...»

17.2.2007

Amor virtual


Antes de deitar-se, tal como o facilitador de desinquietamento espiritual lhe aconselhara, desabotoava a camisa e introduzia o cabo UC na ranhura por baixo das costelas, descarregando para os circuitos de comunicação partilhada tudo o que acumulara durante o dia, ao abrigo de um avatar incaracterístico e de um alias vulgar. Dormia, depois, um sono sem sonhos, confortado pelo esvaziamento experiencial que efectuara e por se crer no anonimato.

Na central de processamento de experiências vivenciais, no entanto, há muito que alguém seguia as suas descargas diárias, cativada pela sua impressionante humanidade. Mesmo sem possuir dados factuais, tais como o substantivo designativo pessoal ou a data de accionamento, ela conhecia-o intimamente e nutria por ele um sentimento que, se não estava em erro, se designara, em tempos, por "amor". Entregava-se à nostalgia daquele sentimento vintage e, em vez de enviar as entradas dele para o centro de ablução de descargas espirituais, encriptava-as e armazenava-as no seu nano-chip.

Com o passar do tempo, ela começou a ver-se na necessidade de apagar alguns dos seus próprios dados, para que o acesso e respectiva desencriptação das entradas dele, se efectuasse instantaneamente; ninguém teria paciência para aguardar a centésima de segundo que demorava o processo, se assim não fosse. A certa altura, os dados dela começaram a ser insuficientes e a entrar em conflito com as entradas armazenadas. Ela, incapaz já de passar sem as descargas dele, não hesitou em resolver as falhas, com o sacrifício de todos os seus dados. O seu chip interno, livre de contradições, pode deduzir então, inteligentemente, os dados de que necessitava para compor a pessoalidade das entradas que possuía: transcreveu-se, assim, a pessoalidade do amado para a do sujeito amador.

5.3.2007
António fechava a mão, abria-a, e olhava-a, talvez na esperança de que o que lhe tinham dito que estava escrito nas linhas da palma da mão se baralhasse, oferecendo-lhe outro destino, mas as dobras que trazia já desde a barriga da mãe, não se alteravam. Considerava-se céptico em relação a todas essas patranhas das bruxas, dos feitiços e das sinas, mas o encontro com aquela mulher tinha abalado profundamente as suas convicções. Visto que a ela não lhe eram estranhos os mais íntimos pormenores do seu passado, porque haveria de escapar-lhe o seu futuro?

Já há mais de uma hora que a mulher o tinha deixado entregue às revelações que lhe fizera, ali, naquela esplanada de uma praça espanhola, onde crianças corriam atrás das pombas, jovens com as cabeças cheias de rastas se reuniam em volta de um batuque monótono e reformados gastavam as horas que todos os dias lhes sobejavam.

António fixava a palma da mão, completamente analfabeto em relação aos seus mistérios, com um nó na garganta, um aperto nas têmporas e o estômago em desbaratinada revolução. Como podia ser, como? Como poderia ele fazer a monstruosidade que a sua mão adivinhara antes mesmo daquela se lhe ter insinuado na vontade? Tinha feito centenas de kilómetros até chegar a Madrid, como um sonâmbulo, guiado não sabia por que instinto. Sim, isso era verdade. Tinha guardado na mala do carro a espingarda de que se munia nas suas caçadas, isso também era certo. E não havia dúvida de que se sentara na esplanada em frente ao hotel onde se tinha hospedado a sua mulher com uma companhia que não a sua. Mas como poderia ele levar a cabo o acto que prognosticara aquela mulher?

Convencido de que a sua mão lhe ditava o destino, António decidiu tomar o futuro em suas próprias mãos. Acabou a cerveja, entretanto morna, partiu a garrafa na beira da mesa de ferro e, com o bocado que segurava na mão direita, interrompeu as linhas da esquerda.
Deixou dinheiro para a cerveja e para a gorjeta ao pé do copo, levantou-se, mergulhou a mão na fonte da praça durante uns minutos, tingindo a água de vermelho e, atando o lenço em volta, meteu-se no carro rumo a casa, feliz por recuperar o cepticismo com que sempre encarara as videntes

15.3.2007

Alberta


Flap, flap, flap, flap, flap.” Aquele som, simultaneamente irritante e excitante, fazia-a ranger os dentes. Imaginava-se a ultrapassar todas as limitações, contra as quais não podia lutar e gozava, de olhar alheado, a cena que nunca iria ter lugar.
Aquele pescoço longo, aquele mover de cabeça gracioso, o delicado andar… Aquele espectáculo que parecia montado para si, provocante, desafiador… Todos os dias se submetia, exaltada e impotente, ao desfile da graciosa criatura que mesmo durante o seu sono continuava a exibir-se, incólume, soberba, inalcançável.
Começou a perder o apetite, a passar o tempo em vigília, a desinteressar-se de tudo o que não fosse a contemplação daquela que tão febrilmente desejava. Os olhos encheram-se-lhe de um brilho delirante e passado pouco tempo, nada mais os habitava senão o reflexo da sua obsessão. Era feliz nesta infelicidade.
Um dia, porém, o que até então parecera completamente impossível, aconteceu. Alberta nem conseguia acreditar no que os seus olhos lhe diziam! A porta, a mesma que durante dias a fio tinha estado sistematicamente fechada, estava a ser aberta, precisamente por quem lhe tinha impedido o encontro com o seu destino.
As mãos tremiam-me enquanto segurava no puxador da porta, consciente, mas não segura do que estava a fazer, do que iria, certamente, acontecer. Repeti, para dissipar-lhe as dúvidas – Alberta, sai… podes ir – e engoli em seco.
Hesitante e incrédula primeiro, entusiasmada depois, Alberta atravessou a ombreira da porta e parou do lado de lá, enchendo o peito de ar livre e coragem. Tinha chegado a hora por que tanto ansiara e temera. A sua desejada não tinha chegado ainda e restavam por isso a Alberta mais alguns minutos de paciente espera.
Flap, flap, flap, flap, flap.” Pela primeira vez, Alberta estava verdadeiramente feliz por ouvir aquele som. Semicerrou os olhos para olhar a fonte do som que vinha na sua direcção, com o sol a brilhar por trás. Sem deixar de fitar a etérea criatura, avançou sem pressa, quase imperceptivelmente, na sua direcção. Quando já estava estonteantemente perto, Alberta franqueou a distância de um salto, cravando os dentes no pescoço da pomba e caindo da varanda abaixo no impulso. Eu, não me movi, já não era o primeiro gato que perdia desta maneira.

9.4.2007

T. Que pena que a massa de que sou feita não seja capaz de manter unidos os tijolos de uma casa. Queria para ti esse céu concreto, prot...